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sábado, 19 de novembro de 2011


Uma breve apresentação do nosso projecto da reflorestação na Serra Amarela

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Remexer nas cinzas

Sentado no café na curva da estrada em Covide, Gerês, meu ponto habitual, as montanhas verdes na minha vista, veio-me à memória a primeira vez que ali cheguei há nove anos. Todo o vale a seguir a Terras do Bouro estava coberto por nuvens de fumo. Perguntei ás pessoas à minha volta quem é que tinha posto fogo. Uns sorrisos e encolher de ombros foram a resposta. Vi em cima da montanha um dos montes carbonizado. Hoje sei que isto aconteceu pela razão de terem limpo a mata, hábito nestas zonas de pastoreio.
Uma vez no alto da serra apesar de chover um pastor queimava o mato à sua volta. Por onde passava deixava atrás de si um rasto de fogo e cinzas. Com o guarda-chuva aberto olhava fascinado para o fogo que ateou. Vendo-me chegar quis ir embora, mas depois hesitou, esperou por mim e diz-me que era para espantar os lobos. No dia anterior tinham-lhe comido duas cabras e delas só restavam os badalos. Senhor Jorge abriu a mochila e mostrou-me duas embalagens de iogurte vazias.
“Não sou como os outros que deitam tudo para o chão. Eu cá sou ecológico. Guardo tudo e quando chegar a casa deito no lixo.”
Desta vez pergunto no café quem pôs os grandes incêndios na Calcedónia. A dona do café comenta que alguns pensam que foram os madeireiros. As árvores têm de ser abatidas e assim ficam muito mais baratas. Um homem à minha frente interfere, dizendo que este ano pode ser por causa da vingança contra o parque nacional.
“Como e porquê?” perguntei.
“Proíbem tudo. Não podemos tirar lenha, limpar a mata e até construir naquilo que é nosso. Estas montanhas pertencem-nos, caramba! Agora tem espaço ali para um projecto da replantação.”
Uns dias mais tarde vi-o patrulhar no seu carro por uma estrada batida olhando para a floresta queimada. Pela minha parte reparei, nessas horas do entardecer, as cores de Portugal. Na margem da estrada os fetos meio verde escuro e meio laranja, porque entramos no outono; os pinheiros dois terços estavam pintados de laranja torrada, por estarem queimados e a copa ainda verde. Mas agora foi adicionada uma outra cor: o negro de fundo.
O homem sentado à minha frente é magro, vivo, com um sorriso encantador, no final dos seus cinquenta anos, vestia uma camisa simples com as mangas arregaçadas.
“Porque há em Portugal tantos fogos no Verão?”, perguntei-lhe. Levou as cadeiras para a sombra das árvores, porque nesse dia o vale de Terras de Bouro estava quente.
“É melhor sentar-nos, porque temos conversa para mangas. Tenho de começar pelo princípio”, diz o comandante dos bombeiros, sr. José Dias, inclinando-se na mesa.
“Porque tudo mudou. Tudo mudou e não foi para melhor. As pessoas abandonaram as terras, foram para outros países ou para as grandes cidades, procurando uma vida melhor. Só ficaram os velhos e os que não tinham pernas para andar. Quando voltam já nada os prende à terra. Ninguém, a não ser pessoas como vocês e eu, andam pelos montes. Por causa dos incêndios já não há animais e o gado rareia. Também a natureza mudou em consequência do nosso desenvolvimento desmedido. Este ano tivemos seis ondas de calor, só este Verão foram três. Chego a ter receio da própria natureza com as suas grandes catástrofes. O grande inimigo é o vento de leste. Se ele chega, ficamos em alerta vermelho. Trovoadas secas com fortes relâmpagos que incendeiam as matas secas, cheias de combustível.
“Nestes dias fala-se muito sobre a limpeza das matas. Uma ideia que chega da Europa central, particularmente da Alemanha, onde há certamente florestas bem controladas. Mas fica esquecido, que aqui há um clima e uma natureza bem diferente, mediterrânea, muito mais selvagem.”
“Sim, tudo cresce pujante durante o Inverno, mas seca rapidamente no Verão. Não há hipótese nenhuma, não há. Vemos tudo claro, quando um incêndio é combatido com helicópteros ou aviões. Chegam, deitam água e vão embora. O fogo extinguiu-se, mas ao fim da tarde reacendeu-se, por vezes ainda mais forte. No subsolo as raízes e tudo que é combustível continua a arder. Basta um animal fazer um buraquinho para respirar, uma raiz despontar ou uma pegada dum animal pesado e o fogo emerge. Mas claro, o primeiro inimigo ainda continua a ser a mão do homem. Muitas vezes por ignorância ou negligência, mas são sempre actos criminosos.”
“No parque de campismo da Cerdeira uma das empregadas disse-me, que o fogo em Vilarinho das Furnas tinha sido ateado por um turista zangado por lhe terem cobrado dinheiro para ali entrar.”
“É mentira. Estava muito gente e ainda tentaram apagar o fogo. Mas foi impossível. Começou directamente na grade da entrada, no lado da albufeira. O fogo saltou para o monte, comeu-o todo e quando chegamos meia hora depois já ardia lá no alto. Aí dividiu-se em dois. Para a esquerda além de Brufe e pela direita até à mata de Cabril e Soajo. Depois na antiga aldeia de Vilarinho o fogo chegou de cima para baixo e aí conseguimos defender o espaço verde de carvalhos velhos. No cima da serra Amarela mal conseguimos chegar, o terreno é muito difícil para os nossos carros. Mas defendemos a mata em baixo das antenas e uma grande parte da mata de Cabril.”
“E na Calcedónia? Ouvi falar, que este fogo foi posto por vingança contra o parque nacional.”
“Este fogo foi posto, de certeza absoluta. Começou em cinco pontos diferentes ao mesmo tempo. Qual foi a razão não sei. Este fogo expandiu-se para esquerda até Junceda e para direita até às Caldas de Gerês, quase entrando na vila, assustando a população. A extensão deste incêndio foi causada por diversos erros. Só um pequeno exemplo: uma bióloga proibiu-me de cortar uma árvore que estava a bloquear a passagem da mangueira. Fiz-lhe ver que era preferível sacrificar uma árvore que deixar queimar centenas ou milhares árvores. Ela não entendeu, esperei até ir embora e ordenei o abate. Quando ela chegou mais tarde, aos gritos pergunta-me quem foi o responsável pelo derrube, mas eu só lhe respondi, ‘quer fazer queixa? Apagamos o fogo ou não?’ Apagamos, mas aconteceu um erro ainda mais grave de que eu não fui responsável. Depois de um grande incêndio têm de ir mais pessoas e apagar o lume que ainda arde debaixo do solo. Na estrada tinha ficado só um guarda de vigilância porque todas as corporações estavam concentradas nas Caldas do Gerês. Aí não gostei muito do ambiente que só servia para atrapalhar e fazer ainda mais tenção e nervosismo. Jornalistas, televisão e dirigentes da vila e concelho, todo o circo estava lá. Quando o guarda viu as chamas emergir saltando a estrada alertou mas quando chegaram já foi tarde demais. Eu estava preso com os meus homens e mulheres noutro combate e não podia largá-lo. Gosto de trabalhar com a minha pequena equipa. Com oito, dez ou treze bombeiros e dois carros conseguimos ás vezes melhores resultados que os outros com cinquenta ou cem homens. Todos se conhecem uns aos outros, sabem os seu deveres e há muita confiança e trabalho de equipa. Ainda não perdi nenhum dos meus bombeiros. Temos carros com vinte anos, o nosso carro mais importante é este ali, pequeno e muito viável.”
“Não podemos lutar sempre com a força da natureza. Ás vezes temos de a aceitar e usá-la para a derrotar. Quando as chamas emergem como uma muralha à nossa frente temos de fugir e esperar num outro local onde possamos combate-las. Temos de ser sempre mais inteligentes do que o fogo. Eu estou sempre atento e observo-o constantemente já vai muito tempo. Como correm os ventos na albufeira? O vento da manhã é um vento que cai das montanhas, esbarra na superfície da água e vai na direcção de onde ela corre e esbarra no paredão da barragem. Ali torna-se num redemoinho, o que eu chamo ventos malucos. Foi isto exactamente o que aconteceu em Vilarinho das Furnas e fez uma pequena chama na margem da água tornar-se num inferno. Por vezes o fogo surge quando menos se espera. Estive na guerra em Angola, numas das piores zonas, as dos diamantes e ouro e a maior parte do tempo não sabíamos com quem lutávamos, quem era o nosso inimigo e donde ele aparecia. Só depois do vinte cinco de Abril vi essas figuras, esses rostos, e soube que não eram monstros, por vezes crianças e mulheres. O fogo também tem mil caras, sempre diferentes.”
“Acha que o parque, orgulho de todos nós, está em perigo?”
“Quem criou o parque? Foram as pessoas que lá viviam, com os animais e a natureza. Esta trindade foi perturbada e agora tudo está desequilibrado. Eu vivo na vila do Gerês e metade do meu quintal pertence-me e a outra está integrada no parque, mas eu não vejo qualquer diferença nesta divisão! Uns dos grandes problemas surge com a falta de meios e pessoal. Trabalham actualmente nele menos de 10% das pessoas que antigamente. Outro problema são estes biólogos que acreditam resolver tudo com proibições sem entender que desta maneira estão a perder o suporte e boa vontade da população. Será que eles o não precisam? Enfim, muita burocracia e desorganização.”
“Em minha opinião um grande problema em relação aos fogos é que não haja justiça nem ninguém saiba quem são os culpados e como serão punidos. Sobre o fogo posto na Calcedónia tem qualquer informação de quem o fez?”
“ Isso é com o SEPNA, os verdes. O nosso propósito é o combate ás chamas sem ligar a detalhes criminosos.
No edifício da G.N.R. perguntei se podia falar com alguém deste departamento e indicaram-me um homem gentil que me levou para o seu pequeno escritório. Era uma pessoa muito correcta, expressão muito séria com trinta e tal anos. Quando me apresentei anotou num caderno a meu respeito e ficou algum tempo distante.
“Sr. Jorge Soares, ao contrário do incêndio em Vilarinho das Furnas o fogo em Calcedónia foi posto como me disse o comandante dos bombeiros, José Dias. Já tem provas e suspeitos?”
Aí pergunta-me se conheço aquelas montanhas. Ao perceber a minha paixão e o quanto já as percorri a sua atitude mudou, ficou mais fraternal.
“Em Vilarinho já posso confirmar que foi negligência, na Calcedónia sabemos que foi fogo posto mas não lhe posso dizer mais detalhes, isso está entregue à polícia judiciária. Fizemos as nossas investigações, interrogamos testemunhas, escrevemos o nosso relatório e enviamos para a judiciária em Braga.”
“E vão saber as conclusões?”
“Em princípio não.”
“Acho estranho vocês fazerem o trabalho fundamental e não serem informados sobre os resultados. Sobre os fogos toda a sociedade está a sofrer pela falta de informação e aqui já começa a acontecer. Isto gera suspeitas sem provas, suposições e boatos. Será possível os jornalistas acompanharem todo o processo até ao julgamento?”
“Sim, com certeza! Até concordo que estes processos devem ter toda a clareza na informação para o público.”
“Se os habitantes desta zona formassem grupos de vigilância e protecção com direitos legais e suporte da G.N.R não acha que seria uma boa ideia?”
Sorri pela primeira vez:”Na minha opinião é uma ideia muito interessante. Todas as ideias para evitar este tipo de catástrofe são bem vindas.”
“Tenho reparado que não há vigilância suficiente no parque. O Sr. Dias diz que é por falta de meios financeiros e má gerência.”
“O parque já não existe! Ainda há torres de vigilância mas sem vigilantes, os postos de informação estão encerrados e o senhor director reside em Braga e é lá a sede. Como pode um parque desta vasta dimensão ser dirigido de tão longe?”
“Acha que faz sentido ir a Braga falar com ele?”
“Com certeza que faz muito sentido, vá lá, faça-lhe todas estas perguntas que me fez a mim e depois volte para me dizer as respostas. A alguém como eu, ninguém vai dar respostas.”
A última frase vou passar para a boca de Dona Rosa, habitante de São João do Campo e antiga moradora da aldeia de Vilarinho das Furnas:
”Ontem estive no Soajo e fiquei impressionada. Tudo queimado que até dava dó. Quem ali pegou fogo pode ficar orgulhoso pois fez um trabalho extraordinário.”

Sem misericórdia

O sonho da razão dá luz aos monstros
Nestes dias ouço muitas vezes estas palavras ditas em relação aos fogos postos. “Se apanho um destes malditos, vou matá-lo, de certeza absoluta”, disse o meu merceeiro, um tipo verdadeiramente calmo. “E se fosse um parente seu”? – “Também o matava, sem nenhuma misericórdia.”
Confesso, que também em mim já apareceram desejos deste género, quando vi a destruição, o fim da beleza, do encanto da natureza e enfrentei o dissabor e o cheiro do fim do mundo, causado pelas chamas. Doeu e muito me revoltei. Com certeza, aqueles que atiçam fogos actuam sem nenhuma piedade e por isso não merecem misericórdia, mas nós, as vítimas merecemos. Os incendiários têm de ser julgados e condenados com a nossa comparticipação, quer dizer, nós temos o direito de ser informados durante todo o processo. Só assim temos a possibilidade de aprender, o que está a acontecer e lançar perguntas.
Os responsáveis devem de entender, que o direito da informação sobre este assunto, que toca a sociedade em si, é um direito fundamental da democracia. Até hoje temos de sofrer e reclamar a falta dele. E não ajuda em nada, quando o ministro para os assuntos inteiros à frente das chamas diz que já temos leis suficientes para punir os fogos postos. Leis de protecção dos bens comuns e privados, que não são cumpridos e executados, pouco merecem os seus nomes, têm mais semelhanças com permissões.
A sentença de morte não está ao nosso alcance, a constituição democrática proíbe-a com muita razão. Não devemos chamar os espíritos, que ninguém sabe controlar; o excesso e o abuso esperam já. O desejo surge meramente do sentido de desamparo e tem uma ligação muito mais forte com a destruição, do que nós pensamos. Jovens perdidos no labirinto da modernidade têm o mesmo sentido de desamparo. E sentem a destruição à sua volta. Quarteirões de prédios erigidos num instante como termiteiras, que têm nomes como “Pinhal do Douro”, “Jardins da Arrábida”, “Encosta Verde” e por aí fora, fazem-me pensar. Por um lado apontam para o que está banido, por outro lado dão uma instrução secreta sobre a direcção do desenvolvimento, que nós sofremos actualmente. Já para não falar sobre um dos maiores e recentes escândalos: a construção dum monstruoso hipermercado no meio dum espaço verde protegido e todas as circunstâncias relativas a isso. Os projectistas, os seus ajudantes, escondidos e conhecidos, os executantes não só ficaram livres e intocáveis, mas além disso com lucro, que tende a desculpar tudo para muitos. Este caso podia ser, como outros, brevemente branqueado da consciência pública, mas irá ficar inesquecido na escuridão dos rumos e na inconsciência colectiva.
Porém certos gestos de repulsa, da desintegração, como passar por uma floresta na auto-estrada e atirar cigarros acesos pela janela do carro com uma grande gargalhada, como já testemunhei, são pouco perceptíveis e merecem ser denunciados. E não esquecer os montes de lixo deitados frequentemente nas entradas das zonas florestais. A limpeza tem de ser muito maior, temos de limpar muito mais do que as matas!
Principialmente, como cidadãos somos co-responsáveis!

Depois do fogo é antes de fogo?

O pastor Manuel com o seu rebanho de ovelhas na serra em cima de Venda Nova, concelho de Montalegre,disse-me: “Tivemos de fugir de um grande fogo uns dias antes.” Ele fez um gesto vago para a esquerda. O seu rosto estava deprimido, a voz baixinha. “As pessoas daqui têm suspeitos, um estranho jovem casal, mas eu não acredito nisso. Acho que são rapazes nas suas moto-cross que atiçam o fogo. Jovens sem ligação à terra, jovens sem uma perspectiva certa.”
Passado um tempo vi-me perdido na floresta preta, encontrei o curral e a casa em cinzas fumegantes, que pertencem ao Manuel. Imaginei-o com o seu cão pastor e o seu rebanho exactamente ali como retalho colorido no negrume. Uma imagem bem forte. Passei as cinzas demorando uma hora e meia, até chegar outra vez à vida, ouvindo os pássaros a cantar e o som do vento nos pinheiros.
Em Paredes, uma pequenina aldeia, o Sr. Jorge disse: “Isto é uma guerra civil em que as vítimas não têm nenhumas armas. Há dias fui ao Gerês e vim de lá chocado. Tive de parar o carro por causa do fogo intenso e vi sair dele muitas corças berrando, assustadas sem as suas mães. Mas o mais horrível foi vê-las virar e correr de novo para o fogo. Nunca mais vou esquecer. O que nós precisamos não são outros aviões de França, de Espanha ou não sei o que mais... Precisamos de uma lei, que proíba vender terrenos ardidos. Precisamos de uma polícia judicial e uma justiça efectiva. Por isso precisamos de um governo com juízo. E acima de tudo: educação e formação no terreno para os jovens, repovoar as aldeias. Por aqui há muita terra abandonada e muito trabalho para fazer.”
Precisamos mesmo de uma sociologia de fogo e mais estudos? Já não sabemos suficiente­mente em que sociedade nós vivemos? Numa sociedade sossegada, calada e muda, numa sociedade imóvel, assustada, empurrada para a esquina, numa sociedade particular, quer dizer, que só se liga com assuntos privados. Foi dito, que todos os povos têm o governo que merecem. Mas é verdade que o peixe começa por cheirar mal da cabeça. Um governo que está ausente em tempo de perigo por causa das férias intocáveis e só manda palavras inertes e absurdas merece todo o nosso repúdio.
E nós, o que vamos fazer? Ficar com os braços cruzados e os olhos tapados com óculos de sol? Depois do fogo fica a ser antes do fogo?
A terceira força, os jornalistas, os escritores, os fotógrafos têm de dar vozes para as pessoas que bem sabem pensar, que sabem falar, mas que não são ouvidas. Têm de incomodar os responsáveis com perguntas directas e claras e exigir respostas concretas.
Aqui fica uma pergunta para os cientistas: Será possível contar a emissão de CO2 lançado para a atmosfera por causa dos fogos? Isto é um caso para ser punido pela Comissão Europeia.
Penso, que é urgente criar um movimento civil que recolha informações, testemunhos, opiniões e conselhos para combater esta praga dos nossos tempos e deste país em que vivemos.
Depois do fogo é antes do fogo? Nunca mais!